quinta-feira, 26 de janeiro de 2012

A PINTURA COMO METÁFORA PARA COMPREENSÃO DO PAPEL INÉDITO DO CORPO




A PINTURA COMO METÁFORA PARA COMPREENSÃO DO PAPEL INÉDITO DO 
CORPO 




Merleau-Ponty afirma que o fundamento inédito da pintura depende da maneira como “o pintor 
emprega seu corpo”
. Se tomarmos o corpo, a carne, de cada um como singular, diferente, tendo cada 
corpo um poder próprio de criação, então parece que há indícios para sustentar tal inédito. Parte-se também do princípio de que não pode haver uma suposição prévia do mundo, e sim uma aceitação do corpo como primordial para nossas vivências. O pintor vê, sente, opera e transforma o mundo a partir de uma perspectiva particular, singular, própria, sucessiva, que nunca é igual, nem para ele mesmo. O corpo neste sentido não pode ser entendido fragmentado, estático, e sim como fundamental para o viver, para o olhar as coisas. O corpo se caracteriza pela visão e pelo movimento, estando sempre em inter-relação com o outro, com o mundo. A visão tem função perceptiva e cognitiva, pois possibilita saber das coisas no espaço, e até tomar ciência do próprio corpo, tendo como escopo o visível. O movimento subsidia a própria visão, pois, encontra-se no visível sendo inerente ao corpo e ao mundo. Embora o corpo veja as coisas, estando imerso nas coisas, no mundo, em um mundo que é anterior ao próprio corpo, ele não se apropria das coisas, e sim as tateia, as assedia, de forma indissociável. Para tanto é necessária a percepção que é própria de cada um, sendo que tanto o mundo, o corpo, ou qualquer coisa, não podem ser tomados 
em si, pois a natureza de ambos é opaca, fugidia, e marcada pelo movimento. O movimento do corpo não se caracteriza pelo fazer absoluto, perfeito, métrico, mas é “a seqüência natural e o amadurecimento de uma visão”, já que, movimento e visão estão simultaneamente se fazendo. Desta exposição sobre o corpo surge o enigma deste ser simultaneamente “vidente e visível”, pois, vê as outras coisas e a si mesmo, tendo uma dupla função, todavia de natureza inerente, interligada, interdependente, no mundo. 
Curiosamente, o corpo, por um lado é tomado como um, uma unidade como as outras coisas, pois está no mundo; e por outro lado, é tomado como difuso, que vê e movimenta-se, tornando as coisas “um anexo ou prolongamento” de si, em uma tecida relação. Ora, “a visão é tomada ou se faz no meio das coisas”, na ação, em recruzamento no mundo, não podendo ser nem posterior e nem anterior ao corpo, pois é simultânea, só tendo sentido na ação. Tal caráter interligado, inter-relacional do corpo, visão e movimento, no mundo, com os outros, restitui ao homem e a humanidade sentidos bem distintos, daqueles empregados pela ciência. Ora, tal exposição do corpo ilustra o caso da pintura, por ser esta análoga ao “enigma do corpo”, em que ambos os casos se caracterizam por este “sistema de trocas”
O olho e o espírito,   em que as coisas e o corpo fundem-se, tramam-se. Há no visível de uma “segunda potência” presente como algo que embaralha e enfumaça o olhar. O olhar, mesmo que pretendesse, não consegue fixar-se, já que o contexto, o fundo, o tecido, é indissociável, devido à natureza do mesmo estofo. Qualquer dado não pode ser significado isoladamente, já que depende dos outros para serem organizados espontaneamente pelo poder da experiência de criação. A visão recebe ecos e os acolhe, mas é a partir do corpo que percebemos, expressamos, existimos, criamos, de maneira inédita, particular. Mas, se há um olhar, então há uma imagem a ser vista. Esta ou é um desenho  ou é mental. Entretanto, este imaginário não é o “atual”, uma vez que as imagens situam-se mais próximas, tal qual um “diagrama”, em que o mundo ara a mim; ou, as imagens situam-se mais longes, em um “análogo” segundo o corpo, em que o espírito não é 
fundamento nem encontra função. Eis que “há um olhar interior, um terceiro olho”, que prepara 
interiormente o real, com seu “dom do visível”
. Todavia, esse dom só se aprende fazendo pelo exercício, já que “a visão só se aprende vendo, só aprende por si mesma”, que vê não só o visível mas também o invisível, o que falta, que mesmo difícil de perceber, também está lá, no mundo. O poder do terceiro olho é como uma surpresa, é o poder de ver algo além do que está dado, pois ao interrogar o mundo, a visão diz algo mais que o próprio sujeito perguntou, a visão nos diz algo que nós não perguntamos. O que possibilita a visão é o olho, este “instrumento que se move por si mesmo, meio que inventa seus próprios fins, o olho é aquilo que foi comovido por um certo impacto do mundo, e que restitui o visível pelos traços da mão”
. Ora, assim sendo, pintar surge como atividade fascinante. E aqueles que não pintam resta admirar uma “revelação”. Enquanto pinta, o pintor “pratica uma teoria mágica da visão”, visto que as coisas e o olhar co-interrogam-se simultaneamente. A pintura se caracteriza justamente por esta dimensão visual. O olhar do pintor procura desvelar os arranjos das coisas, seus elementos visuais, e como dessa forma compomos as coisas, por uma “gênese secreta e febril das coisas em nosso corpo”
. Se compusermos algo, é através do corpo que se possibilita esta composição,sendo a alma ou o pensamento subsidiários a este poder criador. O poder criador inédito do pintor não pode ser desvinculado do recruzamento entre o ser, o outro, e o mundo, em sua visão sempre nova e continuada, em que “entre o pintor e o visível os papéis se invertem inevitavelmente”, e, “já não se sabe mais quem vê e quem é visto, quem pinta e quem é pintado”
. Embora o pintor tenha sua parcela primordial de criação em sua obra, o contexto também contribui para o criar do pintor. Entretanto, tal mundo do pintor é completo sendo parcial. É completo por reter um olhar, com caráter de unidade da tela, e parcial por não reter o todo do mundo, por ser individual, por ser do pintor, por ser do momento.                                                                                                                                                                     


 Curiosamente esta pintura, tal como a visão, só pode ter as coisas “á distância”. Merleau-Ponty critica qualquer possibilidade da pintura evocar qualquer sensação e mesmo a visão, pois, o que se dá é ao contrário, a pintura retrata o invisível dando-nos muito mais do que o visível, do que vemos. Cada um significa como lhe é próprio. É a partir do corpo que se deflagra todo o processo de ser no mundo, do corpo “nosso ancoradouro no mundo”, e não há possibilidade de usurpação da significação de outro. Se “A pintura baralha todas as nossas categorias”, minhas e do outro, de “essência e existência, imaginário e real, visível e invisível” em mudas significações, é porque as minhas significações são próprias, as significações do pintor é dele, e as significações de cada um só podem ser preenchidas por cada qual, e entendidas como tramas indissociáveis; os binômios não podem ser entendidos fragmentados, mas inter-relacionados; minhas categorias só tem sentido quando percebem o diferente. Assim, todo conhecimento brota de uma relação, de uma percepção, em uma criação, que é sempre inter-relação. E, não é só o visível que significa, mas também o invisível,  não só o que vivo tem sentido, o mundo vivido, mas, também aquilo que não vivo, o mundo não vivido. A falta de algo, no mundo, na tela, no corpo, também me preenche, é significativo, embora não vivido. Eu sou quem sou, fruto da relação mundo vivido e mundo não-vivido. Minha criação reflete um amor vivido e também um amor não vivido. Não é só o vivido que me constitui, mas também o não vivido. Não há qualquer sentido em tomar qualquer um destes elementos de forma fragmentada. Todas as pessoas têm alguma coisa que lhes falta. Se o corpo tem este papel fundamental em função do poder da criação,  nota-se, contudo, que a alma não deixa de ter seu devido reconhecimento, só que sendo esta subsidiária à percepção. Na realidade, corpo e alma devem ser entendidos como solidários. Sendo todos estes elementos inter-relacionados, deparamo-nos com a metáfora do espelho. O pintor encara o espelho como um emblema de duplicação de seu olhar, que “amplia a estrutura metafísica da nossa carne”, extrapolando os limites do eu visível. O espelho surge ao sujeito como “metamorfose do vidente e do visível”. Graças à técnica do espelho, meu corpo, meu exterior se completa, e vê visível a minha ex-secreta carne. Ao olhar o espelho eu transformo meu corpo, as coisas, o mundo, contando com tal reflexo. Tal transformação indica a inter-dependência de todas as 
relações e o movimento inacabado. O próprio homem é tal como um espelho para outro homem, que a partir da diferença de reflexo, permite entender a si mesmo, o outro e o mundor




 Leandro Kingeski Pacheco - plkingeski@virtual.udesc.br

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